02/Oct/2023
Ex-secretária de Fazenda de Goiás e atual consultora do Banco Mundial, a economista Cristiane Alkmin Schmidt diz que a reforma tributária não pode deixar nenhum Estado para trás. Ela discorda da proposta do estado de São Paulo, negociada pelo governador Tarcísio de Freitas, para os critérios da votação do Conselho Federativo, que privilegia os Estados mais populosos. Ao lado da partilha do Fundo Nacional de Desenvolvimento Regional, o Conselho que vai gerir o novo imposto a ser criado com a reforma, o IBS (de Estados e Municípios), é o ponto mais polêmico da tramitação da reforma no Senado.
A economista defende que se encontre um meio-termo entre o que querem o Nordeste e Norte e os Estados mais ricos do Sul e Sudeste. Especialista na reforma, a economista diz que há "espaço para limar" no Senado a lista de exceções de setores e atividades beneficiados com alíquota reduzida no texto aprovado na Câmara. Se o Congresso não limar, aquele valor máximo de 27% da alíquota vai aumentar, porque tem gente sendo mais beneficiada. Quando tem meia-entrada para uns, o resto vai pagar a conta. “Não existe almoço grátis", afirma ela, em referência à previsão do Ministério da Fazenda da alíquota com o texto aprovado na Câmara e que agora tramita no Senado. Segue a entrevista:
O que a sra. acha da proposta do governador de São Paulo, que leva em conta critério populacional para as votações das decisões Conselho Federativo?
Cristiane Alkmin Schmidt: Temos de pensar no Brasil e ver que o País tem regiões que têm suas idiossincrasias. Tem o Nordeste, com um tipo de desenvolvimento focado para turismo; o Norte, com suas peculiaridades; o Centro-Oeste, muito agro; e o Sul e Sudeste, que são mais indústria. No Conselho Federativo, não se pode pensar no Estado A, B, C ou D, mas no conjunto da obra. Ou seja: tem que dar oportunidade para que todos possam participar dessas votações. Todas as regiões precisam ter voz. Não é região mais populosa e não é a região mais pobre. São todas as regiões. Se faz por maioria simples, como o Nordeste quer, duas regiões se juntam e acabam prevalecendo diante de um Brasil que tem cinco regiões. Tem que ter um interesse de todo mundo ali contemplado, não é só interesse de São Paulo, Distrito Federal... Tem que criar uma forma para que todos tenham essa possibilidade.
Qual o modelo mais adequado para as votações do Conselho?
Cristiane Alkmin Schmidt: É o que o Eduardo Leite (governador do Rio Grande do Sul) colocou, que precisa ter dois terços (de votos) de cada região para a aprovação. Ele não está visando a pobres e nem ricos. Ele está dizendo: vamos fazer por maioria, mas desde que todas as regiões estejam representadas. Se não quer assim, inventa outra regra; mas o importante é que precisa haver outras regiões sendo representadas nesse ganho. Não dá é para ser só maioria, porque Norte e Nordeste se juntam e ganham. E Centro-Oeste, Sul e Sudeste ficam de fora, chupando o dedo. Quando o Tarcísio de Freitas (governador de São Paulo) veio com a questão da população, obviamente, foi para dizer o seguinte: "olha, não dá para ficar dessa maneira". E eu concordo com ele. Não dá para ficar assim. O ponto que ele trouxe foi importante para dizer: "Norte e Nordeste, nós também queremos ter voz". É possível encontrar um meio termo, uma derivação da proposta do Leite. Seria muito mais adequado que o Comsefaz (Comitê Nacional de Secretários de Fazenda, Finanças, Receita ou Tributação dos Estados e DF) tentar chegar numa regra que chega de comum acordo com todos os entes.
Em entrevista ao 'Estadão', o secretário de Fazenda de São Paulo, Samuel Kinoshita, critica a proposta do governador Leite e diz que o Rio Grande Sul acabaria tendo um poder maior porque tem mais influência sobre os outros Estados do Sul.
Cristiane Alkmin Schmidt: O Leite não consegue mandar no Brasil, por mais que ele possa ter uma influência no Sul. Não vejo por que ele iria se beneficiar.
Por que a criação do Conselho Federativo é tão crucial para reforma tributária? É possível que ele seja um órgão meramente administrativo?
Cristiane Alkmin Schmidt: Ele está tendo uma conotação mais política do que deveria. Eu estou muito na linha do senador Eduardo Braga (relator da reforma no Senado) e do Bernard Appy (secretário extraordinário da reforma) de que esse conselho é muito mais para traçar normas operacionais de funcionamento. A vantagem é que ele dá garantia do creditamento (do IBS) para o contribuinte, independentemente das situações fiscais dos Tesouros estaduais. Há também uma simplificação para a empresa que vende em muitos Estados, pois ela tem que lidar apenas com um "fisco", que é o Conselho Federativo, com uma legislação e uma interpretação da lei. Também haverá maior eficiência, porque há uma junção de notas de todas as compras e vendas - para todos os municípios e Estados. Sem o Conselho, seria impossível operacionalizar para as diversas burocracias municipais, algumas até sem uma estrutura fiscal adequada.
A guerra fiscal entre os Estados vai, na prática, acabar?
Cristiane Alkmin Schmidt: O que existe aqui no Brasil não existe em outros lugares. É uma loucura, gera uma tremenda ineficiência e não cumpre mais o papel de dar maior competitividade para certas empresas, pois todos os Estados copiam uns aos outros e os Tesouros ficam com caixa baixo. O tax competition, que existe no mundo e que ocorre no consumo, é o que os Entes poderão fazer depois que acabar a transição. Isso ninguém é contra. Cada ente vai arcar com uma alíquota menor para todos os bens e serviços dos seus Estados, se assim quiser atrair mais consumidores para os seus Estados.
Há governadores que reclamam que perderão autonomia para conceder incentivos...
Cristiane Alkmin Schmidt: Se os governadores quiserem fazer programas de incentivo a algum setor, nada os impedirá de fazer. Basta ele colocar de forma transparente no seu orçamento, como ocorre em qualquer lugar do mundo.
O que acha da proposta de São Paulo de reduzir de 50 anos para 10 anos o tempo da transição da cobrança do imposto da origem para o destino?
Cristiane Alkmin Schmidt: Eu penso no Brasil, na Federação. Queremos fazer uma reforma tributária para alavancar o País, para trazer mais crescimento, produtividade. Só que não podemos deixar Estados e municípios para trás. Alguns Estados vão perder, de fato. Pelos dados do Comsefaz, Mato Grosso, Mato Grosso do Sul, Espírito Santo e o Amazonas perderiam. Só que Amazonas terá Zona Franca de Manaus mantida. É injusto deixar para trás porque são Estados muito produtores e que não têm uma população tão densa. Do jeito que a PEC está escrita, se não der um prazo longo de transição para esses Estados, pode deixá-los com arrecadação aquém do que teriam ao longo do tempo. Quando se pensou numa transição grande, eu entendo que é extensa, porque não pode deixar ninguém para trás. São Paulo é um Estado que sempre foi e sempre será um atrativo. Ele se preocupa menos (com a transição) porque sabe o quanto atrativo é no Brasil. A guerra fiscal começou porque os Estados queriam ser tão competitivos como São Paulo.
Não há muitos setores e atividades na lista de exceções, com alíquota mais baixa, na proposta de reforma aprovada na Câmara? Há espaço para cortar?
Cristiane Alkmin Schmidt: Para mim, tem. Eu limaria. Há espaço para limar. No Congresso, já tem a OAB fazendo grupo de interesse para dizer que os advogados mereceriam ter alíquota diferenciada. Eu sou economista e digo que não acho que nós, profissionais liberais, temos que ter alíquota diferenciada. Economista não é melhor do que advogado, que não é melhor do que contador...
Havia uma expectativa de que o Senado iria reduzir as exceções. E não é essa a tendência que se pode observar nas negociações...
Cristiane Alkmin Schmidt: Eu vou devolver a pergunta. Se o Congresso não limar, aquele valor máximo de 27% da alíquota vai aumentar, porque tem gente sendo mais beneficiada. Quando tem meia entrada para uns, o resto vai pagar a conta. Não existe almoço grátis.
A sra. foi secretária de Fazenda do governador de Goiás, Ronaldo Caiado. Como vê a posição dele contrária à reforma?
Cristiane Alkmin Schmidt: Democracia é assim mesmo. Temos de respeitar todas as opiniões, ainda que discordemos na essência do argumento, que é o caso da reforma tributária exposta na PEC 45. Faz parte do debate. Ele defende que a mesma prejudica o crescimento brasileiro; já eu penso de forma diversa. Mesmo considerando algumas incertezas, com base em inúmeros estudos, é possível inferir que o ganho de produtividade - logo, de crescimento que o Brasil terá - será expressivo, concretizando um importante avanço na agenda de reformas estruturais no País. Assim, para mim, a PEC 45 precisa ser lapidada no Senado e aprovada antes de janeiro de 2024. Melhor para os contribuintes, melhor para os Tesouros, melhor para o Brasil.
Fonte: Broadcast Agro.