01/Apr/2024
Em janeiro de 2021, a Malásia abriu um pedido de consultas junto ao Órgão de Solução de Controvérsias (OSC) da Organização Mundial do Comércio (OMC), questionando medidas adotadas pela União Europeia (UE) e seus Estados membros, França e Lituânia, que afetam o comércio de óleo de palma e os biocombustíveis à base de óleo de palma. Em 2019, a Indonésia já tinha entrado com um painel semelhante na OMC. No dia 5 de março de 2024, o Painel publicou seu relatório, que trata da adoção de medidas com objetivos climáticos que pretendem controlar ou reduzir emissões de gases de efeito estufa (GEEs). A proliferação de medidas de carbono que podem afetar o comércio é crescente. A Diretiva de Due Diligence, que busca evitar emissões decorrentes de desmatamento e o Carbon Border Adjustment Mechanism (CBAM), a regra de due diligence do Reino Unido e sua recente proposta de medida de carbono na fronteira são alguns exemplos.
Os debates sobre a relação de comércio e meio ambiente são calorosos na OMC, que reúne na Environmental Database 18.197 medidas de caráter ambiental e 8.661 notificações feitas pelos membros sobre essas medidas, que podem gerar restrições ao comércio. Entre 2015 e 2022, a notificação dessas medidas aumentou 9 vezes. A decisão da OMC joga luz sobre uma medida climática, baseada na aplicação de uma metodologia para mensurar e gerir riscos dos chamados efeitos indiretos do uso da terra (iLUC, indirect land use changes) na produção de óleo de palma e biocombustíveis de palma. A discussão sobre iLUC ganhou peso entre 2009 e 2010, quanto pesquisadores buscaram modelar emissões indiretas de GEEs decorrentes de desmatamento, que tolheriam os benefícios dos biocombustíveis em relação às emissões reduzidas quando comparados aos combustíveis fósseis.
As metodologias que visam mensurar risco de iLUC existem há alguns anos em regulamentações de países, bem como na certificação de sustainable aviation fuels, no âmbito do Carbon Offsetting and Reduction Scheme for International Aviations (Corsia) da Organização da Aviação Civil Internacional (ICAO) e em outros esquemas de certificação de biocombustíveis. A Renewable Energy Directive II determinou a participação de 32% de fontes renováveis no consumo de energia e 14% de renováveis no setor de transportes. Os biocombustíveis produzidos a partir de culturas alimentares e forrageiras não devem exceder 1% a mais do que a quota desses combustíveis no consumo final de energia no setor de transportes de cada Estado-membro em 2020, até uma contribuição máxima de 7% da energia total consumida no setor dos transportes ("limite de 7%" ou "quota máxima de 7%").
Para a UE, os limites para o uso de certos biocombustíveis e as categorias de risco de iLUC buscam assegurar objetivos climáticos, de proteção de biodiversidade e de moral pública. Adicionalmente, a contribuição dos biocombustíveis produzidos a partir de culturas alimentares ou forrageiras implica uma expansão significativa da área de produção em terras com altos estoques de carbono ("biocombustíveis com elevado risco de iLUC") e não deve exceder o nível de consumo desses combustíveis nos Estados-membros em 2019 ("limite máximo de risco de iLUC"). A partir de 31 de dezembro de 2023, esta contribuição deveria ser gradualmente reduzida para 0% no máximo até 2030 (a eliminação progressiva do elevado risco de iLUC). Malásia e UE destacaram que se saíram vitoriosas no painel, o que exige uma análise criteriosa da decisão, que pode se tornar uma referência sobre como a OMC tratará das medidas de carbono e, de forma mais ampla, influenciar outros foros onde a temática de iLUC é super relevante, como no debate sobre biocombustíveis de aviação e marítimo.
O painel entendeu que o objetivo de limitar o risco de emissões de GEEs com base em uma metodologia que enderece iLUC é legítimo para proteger a vida ou a saúde humana, animal ou vegetal, nos termos do Artigo 2.2 e o Preâmbulo do Acordo sobre Barreiras Técnicas ao Comércio (Acordo TBT), e na exceção do Artigo XX(b) do Acordo Geral sobre Tarifas ao Comércio. O entendimento de que a medida não é mais restritiva do que o necessário para alcançar objetivos climáticos torna esse julgamento um precedente relevante quando se considera medidas de carbono que visam atingir objetivos de redução de emissões de GEEs. De forma ampla, medidas de carbono podem ser consideradas objetivos legítimos na OMC. No entanto, a maneira pela qual a UE administrou o limite e a eliminação progressiva de alto risco de iLUC foi discriminatória.
A UE não fez uma revisão oportuna dos dados usados para determinar quais biocombustíveis são de alto risco de iLUC e porque os critérios para auferir o baixo risco de iLUC resultam, na prática, em uma discriminação arbitrária ou injustificável. Ademais, o painel entendeu que os requisitos para caracterizar o risco de iLUC dos biocombustíveis refere-se a um processo de avaliação de conformidade, de acordo com as regras do Acordo TBT, muito embora o processo de certificação adotado pela UE está incompleto e depende das regras de implementação, portanto cria um obstáculo desnecessário ao comércio internacional. O painel ainda entendeu que a UE falhou na operacionalização dos critérios de risco de iLUC, por não notificar e abrir um processo de consultas de acordo com as regras de avaliação de conformidade. Vale pontuar que houve uma intensa discussão entre os três membros do painel, especialmente quanto à medida europeia ser considerada um objetivo legítimo. Não houve um consenso.
A aplicabilidade da medida, os requisitos que gera, as obrigações que impõem, precisam ser avaliadas caso a caso. É prematuro avaliar se a UE irá fazer mudanças na forma como operacionaliza sua metodologia de iLUC. Não deverá haver apelação, visto que a Malásia não participa do Multi-Party Interim Appeal Arbitration Arrangement (MPIA), mecanismo interino que visa manter a via de apelação na OMC, diante da suspensão do funcionamento do Órgão de Apelação. Caso o painel da Indonésia chegue a um resultado, poderá trazer mais luz sobre o tema, muito embora tenda a levar a um acordo. A OMC vive uma crise e busca fortalecer o sistema multilateral de comércio, e já reconheceu que é preciso incorporar a agenda de carbono. Dessa forma, é inevitável que a decisão tenha respaldado o objetivo climático da medida europeia.
No entanto, o resultado do painel não permite inferir, de forma automática, que qualquer medida climática, independentemente das restrições, custos e impactos que possa gerar, seguirá as regras da OMC. A aplicação de uma medida de carbono é que pode ensejar restrições maiores do que o necessário para atingir os objetivos climáticos. Como é usual nas controvérsias da OMC, a interpretação e a subjetividade inerente a cada caso exigem reconhecer que a interpretação dessas medidas ainda deve gerar calorosos debates jurídicos. Em linha com as conclusões da 13ª Conferência Ministerial da OMC realizada em fevereiro deste ano, evoluir em um entendimento comum sobre como tratar das medidas ambientais e fomentar uma maior cooperação entre a OMC e a Convenção do Clima deverá gerar uma ampla movimentação dos países nos próximos anos. Neste contexto, a presidência brasileira no G20 pode ser uma imensa oportunidade para encontrar soluções comuns. Fonte: Rodrigo C. A. Lima. Broadcast Agro.