24/May/2024
As mãos calejadas pelo trabalho na terra secam as lágrimas de Nair Finn, de 66 anos, agricultora do Vale do Caí, no Rio Grande do Sul. A alguns quilômetros dali, Geraldo Maders, de 77, produtor rural do Vale do Taquari, faz o mesmo. Em comum, além do gesto e das lágrimas, os gaúchos carregam uma história de gerações na lida no campo e a tristeza de verem tudo destruído pelas cheias que atingiram o Estado. Responsáveis por abastecer escolas, hospitais e mercados com seus produtos, os pequenos agricultores viram as plantações serem devastadas pelas águas dos rios ou apodrecerem no pé, por causa da chuva torrencial. Nair Finn vive e planta numa pequena propriedade às margens do Rio Caí, em Caxias do Sul, na Serra Gaúcha. Desde que se conhece por gente, viu mandiocas, vagens, alfaces, acelgas e espinafres nascerem na terra da família. No início do mês, quando as chuvas desbarrancaram morros e sobrecarregaram os rios, ela e o marido, Clério, saíram às pressas de casa durante a madrugada, levando o que podiam dentro do caminhão.
Bem mais valioso dos Finn, a terra fértil ficou sob as águas. “O que estava na terra foi embora. A gente não vê onde estava plantado aipim, onde estava plantada batata-doce, onde estavam as verduras. Nada, nada, nada”, diz Nair. “Por onde começamos? O que vamos fazer? Como vamos fazer? Essa pergunta também me faço.” O recomeço é ainda mais complexo para quem, depois de uma vida toda de trabalho, esperava chegar à velhice com um pouco de tranquilidade. Contrariando as expectativas, homens e mulheres do campo agora reavaliam até a própria permanência nas terras que sempre cultivaram. “Tenho medo de ficar. O Rio Caí é traiçoeiro”, diz Nair. A Cooperativa de Agricultores e Agroindústrias Familiares de Caxias do Sul (CAAF) estima que 90% da produção da região tenha sido perdida. Com isso, a previsão é de que esses pequenos produtores sofram com a falta de renda por até quatro meses. Essa agricultura familiar é responsável por abastecer pelo menos 205 escolas da Serra Gaúcha e da Região Metropolitana de Porto Alegre.
Além disso, os produtores também vendem alimentos para a merenda de outros Estados, como São Paulo e Paraná. A família Seefeld ficou ilhada e viveu momentos de desespero quando morros começaram a cair nas redondezas da propriedade. Sem luz, auxiliaram no resgate de um vizinho doente, enquanto escutavam a terra ceder ao redor. Quando as águas baixaram e a gravidade da situação foi se atenuando, viram parte da roça destruída. As beterrabas prestes a serem colhidas foram rio abaixo, assim como outros legumes e verduras cultivados. Considerando equipamentos para o cultivo e a perda da safra, estimam um prejuízo de cerca de R$ 50 mil. “Não é um dia, um ano de trabalho. São anos dedicados a deixar a propriedade do jeito que estava. Aí, chegar de manhã cedo e ver que a força da natureza levou tudo embora... O cara pensa às vezes em desistir. A renda total nossa é só essa. Dependemos da agricultura familiar. Meu bisavô, meu avô, meu pai e eu trabalhamos com isso. É a quarta geração”, diz Jeferson Seefeld, de 32 anos.
O governo federal anunciou um crédito de R$ 1 bilhão para a agricultura familiar. Com isso, os pequenos produtores que participam do Programa Nacional de Fortalecimento da Agricultura Familiar (Pronaf) terão direito a refinanciamentos de até 120 meses, com carência de 36 meses. Essas famílias estarão submetidas a uma taxa de 0% de juro, ou seja, o valor pago será o mesmo emprestado, sem acréscimo. Segundo a Cooperativa de Agricultores e Agroindústrias Familiares de Caxias do Sul (CAAF), é preciso encontrar uma forma de reanimar esses agricultores, porque são eles que vão produzir o alimento, se não haverá uma crise de abastecimento. Em outra parte do Estado, na zona rural de Estrela, no Vale do Taquari, o desânimo já tomou conta dos agricultores. Não tinha como ser diferente. A paisagem mudou drasticamente desde que o rio desrespeitou a própria curva e invadiu celeiros e plantações, arrastando consigo alimentos e animais. As cenas do desterro ainda estão na cabeça de José Luís Mallmann, de 67 anos. “As novilhas saíram nadando. Uma começou a nadar em volta da casa e desapareceu, morreu. Isso dói”, lembra.
José Luís tinha 23 vacas e perdeu mais da metade. Vendeu as que sobraram para um produtor cuja propriedade é numa região mais alta. Com isso, o negócio que sustentou seus filhos deixa de existir. Agora, ele pretende se dedicar somente à produção de grãos. Conforme a Federação dos Trabalhadores na Agricultura Familiar (Fetag-RS), mais da metade dos produtores de leite do Estado foi afetada de alguma forma pela chuva, causando uma redução de 15% no volume de leite, por causa da dificuldade de captação. O filho de José Luís, Fernando Mallmann, de 40 anos, define o que aconteceu como um “triste fim”. Como o pai, ele vive do que produz às margens do Rio Taquari. Apesar da tristeza, Fernando olha para o que restou e reflete. “Nós ainda temos uma casa para limpar, os outros não têm”, diz. Desde que as chuvas ceifaram vidas na região, ele tem evitado determinados pontos da fazenda onde as águas são barradas por árvores e normalmente aparecem animais mortos após a chuva. “Pode ter corpos de pessoas também.” Os Maders limpavam a casa inundada. Donos de uma microempresa de melado, Geraldo, de 77 anos, e Ivone, de 75, tentavam botar em ordem o que restou.
A pequena sala onde produziam o melado foi tomada pela água e tachos enormes de ferro foram levados. O mesmo aconteceu com o carro da família, encontrado no rio dias depois. “Deus nos deu uma cruz muito pesada para carregar”, disse Geraldo, chorando. O frondoso canavial que tinham na frente de casa e fornecia o sustento da família foi levado pela enchente. Em meio aos pés de cana-de-açúcar tombados pela enchente, entulho. “Está tudo morto”, lamentou Geraldo. Segundo o Ministério do Desenvolvimento Agrário e Agricultura Familiar, o impacto das chuvas na atividade ainda está sendo mensurado, já que ainda há muitas áreas alagadas. A Pasta afirmou que todas as dívidas de crédito rural foram suspensas por 105 dias em municípios com decretação de emergência ou calamidade pública. O governo também editou uma portaria para permitir por 90 dias a comercialização de produtos de origem animal para outros Estados. A Associação Rio-grandense de Empreendimentos de Assistência Técnica e Extensão Rural (Emater-RS) estima que na região de Lajeado cerca de 40 hectares de cultivo de hortaliças tenham sido perdidos.
Relatório da entidade mostra uma série de danos à agropecuária em todo o Estado. Além da perda de plantações, o que sobrou é de baixa qualidade, com grãos mofados e mal desenvolvidos, elevando o risco de presença de toxinas altamente prejudiciais a humanos e animais. Na região de Arroio do Ouro, em Estrela, mesmo aqueles que não tinham a agricultura como fonte principal de renda traziam a atividade como uma parte de si. É o caso de José Tomás Mallmann, de 75 anos. Aposentado com uma renda baixa, ele tinha na produção de 120 sacos de milho por mês uma forma arcar com as despesas de saúde. “Preciso de muitos remédios, já fui quatro vezes operado do coração. Tu precisa plantar, porque a nossa aposentadoria está caindo.” Antes da enchente, a plantação de milho rodeava a casa de José Tomás. Agora, os restos imprimem um aspecto triste ao local. “Já perdi três colheitas aqui. Afogaram. Chove e o milho fica mais de uma semana debaixo d’água.” Fonte: Broadcast Agro. Adaptado por Cogo Inteligência em Agronegócio.