15/Oct/2024
O potencial do continente africano em relação à produção e exportação de alimentos tem despertado a atenção de investidores não só do Brasil, mas de gigantes como a China e o continente europeu. Para o Instituto Brasil-África, João Bosco Monte, devido a gestões, intercâmbios e troca de tecnologias agropecuárias feitos há pelo menos três décadas entre brasileiros e o continente, os africanos "tomaram gosto pelo Brasil" nas parcerias.
Em se tratando de investimentos de parte a parte, talvez a agropecuária "seja o jogo mais fácil de ser jogado", dadas as semelhanças de clima e solo entre Brasil e alguns países da África. Ele vê, ainda, a situação atual da agropecuária da África como se fosse o Brasil de 40 anos atrás, ou seja, com um imenso potencial de crescimento. Com a troca de tecnologia que os africanos querem e precisam, Monte vê como certo que o continente se tornará um dos principais produtores e fornecedores globais de alimentos, a exemplo do Brasil hoje.
Apesar das semelhanças entre ambos, ele alerta que se deve respeitar as idiossincrasias de cada um dos 54 países africanos, levando-se em conta o perfil predominante de agricultura familiar no continente, o que não impede grandes produções de alimentos, como mandioca e castanha de caju. Na entrevista, Monte conta um pouco também sobre o Fórum Brasil-África 2024, promovido pelo Instituto Brasil-África, que termina nesta terça-feira (15/10), no Sheraton WTC, em São Paulo. Segue a entrevista:
O Fórum Brasil-África 2024, promovido pelo Instituto Brasil-África, tem como tema central "Investimento em Infraestrutura para o Desenvolvimento Sustentável no Brasil e na África". Como o setor agropecuário será abordado dentro deste "guarda-chuva"?
João Bosco Monte: Na programação do evento há um painel dedicado à agroindústria e ao agronegócio, o primeiro painel, com o tema "Agroindústria: desafios e soluções logísticas para produção no Brasil e na África". Na minha visão, na relação entre o Brasil e o continente africano, o setor agropecuário talvez seja o jogo mais fácil de ser jogado. Costumo, aliás, dizer que algumas regiões da África, hoje, em termos de desenvolvimento agropecuário, se parecem muito com o Brasil de 40 anos atrás. O que nós fomos há quatro décadas é a realidade atual de muitos contextos africanos. Então, faz todo sentido, quando pensamos no desenvolvimento das relações entre ambos, colocar a agropecuária na agenda deste evento. Há, ainda, outro painel, "Explorando o potencial agrícola e pecuário do Estado de Níger". O que nos aproxima mais é a agricultura, e claro, quando se fala sobre este setor, fala-se também de infraestrutura, de crédito, de inovação e tecnologia, cooperação e parcerias público-privadas. A agricultura é uma matriz que tem um mote muito amplo.
Como o senhor resumiria, hoje, as relações entre o Brasil e a África, no que diz respeito ao setor agropecuário?
João Bosco Monte: Nos últimos 30 anos o Brasil se aproximou muito da África, especialmente durante os governos de Luiz Inácio Lula da Silva, quando essas relações tiveram um impulso muito grande. O presidente, já em seus primeiros mandatos, e também agora, destacou que, na sua política externa, a África tem prioridade. Ele fez diversas visitas ao continente e levou consigo empresários, principalmente do agronegócio, que viram naquela região espaços até então desconhecidos, além da possibilidade de realizar parcerias, de se criar uma conjuntura benéfica para que o que já é produzido no Brasil seja produzido também na África, em razão das terras aráveis, dos recursos abundantes em alguns países africanos, da mão de obra e principalmente de um mercado muito grande, de 1,4 bilhão de pessoas. Além disso, a África tem condições de abastecer com alimentos vários países da Ásia, entre outros continentes. Então, a partir daí, criou-se uma mentalidade de que o continente africano poderia ser mais parceiro do Brasil sob este aspecto.
Se nos primeiros mandatos do governo Lula não havia um interesse crescente em investir na África, hoje o cenário mudou, não?
João Bosco Monte: Há vários países interessados no potencial agropecuário do continente africano, claro. Ao longo dos anos, outros atores surgiram no cenário para efetivar trocas com a África, como Turquia, Cingapura, Europa, Estados Unidos e principalmente a China. Esses atores passaram a ter destaque nas conversas com os africanos. Mas há um detalhe importante e que favorece o Brasil: é a tropicalização de experiências brasileiras no setor agropecuário e que podem, muito facilmente, ser adotadas em território africano. É difícil que uma experiência chinesa, turca ou japonesa tenha o mesmo vínculo do que a brasileira em um contexto africano, por causa da nossa similaridade climática e de solos. E sempre ouço dos parceiros africanos: se deu certo no Brasil, dará certo em países da África também. O que é necessário, apenas, é customizar essa experiência, pois devemos, sempre, respeitar as singularidades de cada país. Então, o momento atual é diferente, porque outros atores surgiram, mas também é valioso para nós porque os africanos tomaram gosto pelo Brasil.
Além do Brasil, o mundo está de olho nas terras aráveis do continente africano. É ali que a produção de alimentos poderia se expandir largamente. Como o senhor vê esse potencial?
João Bosco Monte: Para mim é questão de tempo que alguns países da África se tornem importantes abastecedores de alimentos, tanto para o próprio continente, quanto para outros países. Mas o que falta é a disseminação de tecnologias que permitam transformar a matéria-prima bruta em produtos com maior valor agregado. Ou seja, a proteína animal que a África produz, como a carne bovina, o frango e o peixe, em algum momento deveriam ser processados para agregar valor. A China, por exemplo, pode contribuir com isso, com a tecnologia que já domina, para financiar parques tecnológicos e industriais, assim como o Brasil.
A China tem se tornado grande investidora na África?
João Bosco Monte: Ela não pode ser considerada como inimiga, diante de sua avidez em investir em outras regiões do mundo. Ao contrário. Precisamos ter sensibilidade e ousadia de chamar a China para ser parceira, cada um dentro da sua capacidade e com o que puder contribuir. É fácil entender que a China tem fôlego financeiro e capacidade de investimento muito maiores do que o Brasil. O que não impede que os dois países trabalhem juntos, no continente africano, para avançar em importantes agendas de produção de alimentos, pois a necessidade de a África produzir alimentos é imensa. Nigéria, Etiópia, Sudão, República Democrática do Congo são países muito populosos e que precisam abastecer seus habitantes. É, aliás, uma necessidade urgentíssima, e, além disso, eles têm um mercado consumidor imenso. Se um mercado com 200 milhões de pessoas não for valioso, é preciso inventar outro modelo econômico. Assim, Brasil e China podem encontrar meios de trabalharem juntos e olhar essas dificuldades como ativos.
Que iniciativas da China em direção ao continente africano têm ocorrido ultimamente?
João Bosco Monte: O presidente da China, Xi Jinping, recebeu recentemente vários presidentes de países da África e, nessas reuniões, foi traçada uma estratégia de maior participação do setor privado no intercâmbio entre a China e esses países. Aliás, costumo dizer que a diplomacia presidencial é importante porque abre espaço, mas o que vem depois e conta muito mais é a participação do setor privado para manter acesa a expectativa de cooperação, e principalmente as parcerias. Sem parcerias temos pouca capacidade de conseguir ações longevas.
Há expectativa de a agricultura empresarial brasileira investir na África?
João Bosco Monte: Perspectivas existem. Iniciativas, por enquanto, não. Porque a realidade dos países africanos é diferente da realidade do Brasil sob este aspecto. Em Mato Grosso, por exemplo, há muita terra na mão de poucas pessoas. Há propriedades rurais no Estado que são percorridas com aviões. Isso não acontece no contexto africano. Essa é a realidade, embora tenhamos também muitos pequenos produtores no Brasil. Então, se no Brasil um produtor com 200 hectares de terra é considerado pequeno, no contexto africano isso seria considerado até um luxo, até porque não é comum haver terra nas mãos de particulares. É um modelo de utilização de terra diferente do brasileiro. Então, muitos brasileiros, quando pensam em produzir na África, querem comprar terra como compram aqui, mas naquele continente não é assim e, inclusive, são 54 países, cada qual com sua realidade. Então, quando você pega a produção de larga escala do Brasil, não dá para ser transferida para o contexto africano do mesmo modo. Não sei se isso vai acontecer e também não vejo isso como problema, já que a transferência de tecnologia do Brasil para a África pode também se dar com os pequenos produtores, pois o Brasil também tem farta tecnologia voltada aos pequenos. E é necessário entender qual a vocação de cada lugar.
Que tipo de tecnologia brasileira poderia ser transferida para os pequenos produtores africanos?
João Bosco Monte: A Nigéria, por exemplo, é o maior país produtor de mandioca, mas agrega pouco valor à cultura, ao contrário do Brasil, especialmente no Paraná. Comemos a raiz, fazemos farinha, tapioca, cosméticos e até combustível. Há uma série de ativos oriundos dessa cultura. E, na África, apesar de haver grandes países produtores, como Nigéria, Costa do Marfim, Gana, Togo, Burquina Fasso e Serra Leoa, ainda não há agregação de valor. E, aqui, o Paraná, é especialista em agregar valor à mandioca, com indústrias que aprenderam a comprar a produção de pequenos produtores e processar a raiz. Então, isso pode ser feito também no continente africano. Seja com parcerias entre as empresas públicas na transferência de tecnologia, como a Embrapa, mas também com empresas privadas.
E, na sua visão, quais seriam os produtos com maior potencial para essa transferência de tecnologia agropecuária entre Brasil e África?
João Bosco Monte: Bom, há as grandes commodities agrícolas, que acabam sendo as primeiras da fila, como arroz, feijão, milho e soja. A transferência de tecnologia seria para reduzir a importação da África desses produtos. Os países africanos precisam parar de importar e passar a produzir, senão a conta não fecha. A inflação e a desvalorização da moeda de países africanos em relação ao dólar não permitem manter essa política importadora. Então, a África quase que compulsoriamente precisa passar a produzir arroz e outros alimentos. Gana, por exemplo, pode produzir arroz como no Brasil, desde que respeitadas as peculiaridades daquele país. Outro exemplo é Guiné-Bissau, também de língua portuguesa que tem 90% da economia atrelada à castanha-de-caju. Embora o Brasil tenha uma boa produção, ainda importa a castanha, tanto de Guiné-Bissau, como de Togo, Gana e Burquina Fasso. Mas ao contrário desses países africanos, o Brasil já virou a chave em relação ao processamento dessa matéria-prima e estamos entre os cinco maiores produtores e exportadores. Então, é possível que o que a gente já sabe sobre processamento de castanha de caju no Brasil seja trasladado para Guiné-Bissau, a fim de transformar a economia da região.
E em relação à proteína animal?
João Bosco Monte: O Benin, um país que tem 16 milhões de habitantes, está prestes a parar de importar carne de frango e se tornar autossuficiente. Embora seja uma nação pequena, tem ao seu lado um grande país, como a Nigéria, com 200 milhões de habitantes. Com uma cadeia produtiva já estabelecida no Benin, há possibilidade, por exemplo, de produtores de frango do Brasil se estabelecerem lá para exportar carne para a Nigéria. São possibilidades que podem ser exploradas por empresários brasileiros. Com o algodão, a mesma coisa. Empresas brasileiras podem ir plantar e processar a fibra no Sudão ou na Etiópia, para agregar valor a essas culturas. Seja em relação a quaisquer culturas, como grãos ou qualquer outra, importante é ressaltar que o Brasil pode mostrar e transferir tecnologia, investir em determinado país africano, ou ter uma representação importante no contexto local. Mas quem vai decidir o que fazer com o produto, se vai exportar ou reverter para o mercado interno, é o país produtor. Os africanos que precisam dizer o que eles querem.
E como o Instituto Brasil-África se situa neste contexto?
João Bosco Monte: Como instituto, atuamos sob o ponto de vista do Brasil e depois para o contexto africano. E, apesar de haver Brasil-África no nosso nome, nos últimos oito anos, mesmo antes da pandemia, identificamos um interesse muito grande de outras regiões do planeta ou no Brasil ou na África ou em ambas as regiões. Nosso nome se amplificou. Assim, as ações do instituto não envolvem só essas regiões. Temos relações com os Emirados Árabes Unidos, a China, a Europa e a Rússia. Na África, já visitei 47 países, de um total de 54. Quando fundamos o instituto, há 12 anos, a ideia era apresentar boas experiências de um lado a outro. Que as boas práticas adotadas no Brasil podem ser utilizadas na África e vice-versa. E quando falamos de boas práticas, refiro-me tanto em nível governamental, do Brasil para países africanos, como no nível subnacional, como intercâmbio entre Estados brasileiros e países da África e também do setor privado. Nós, inclusive, valorizamos muito o papel do setor privado nessas ações. Falei, anteriormente, que a diplomacia presidencial é importante, mas quem dá o ânimo para que as coisas aconteçam é o setor privado. E o Instituto Brasil-África apresenta um lado para o outro, com ações em três bases: capacitação técnica, com intercâmbio de jovens africanos no Brasil e vice-versa; análises e cenários, seja por iniciativa própria ou sob demanda, aonde vamos para o terreno e identificamos oportunidades e a terceira parte são os eventos, como este que estamos promovendo agora em São Paulo.
O atual governo brasileiro tem aumentado o número de adidos agrícolas espalhados pelo mundo. O que acha dessa iniciativa?
João Bosco Monte: Certamente eles têm um papel muito importante. E quando se leva em conta a possibilidade de um adido agrícola ampliar as trocas comerciais, é importante dar condições para que isso de fato aconteça. Além disso, quando um agente público brasileiro especializado no setor agrícola participa de negociações, isso dá uma segurança muito grande para quem está do outro lado. É um valor inicial importante a ser considerado. O adido é um delegado do governo para defender determinada agenda. Vamos ter adidos em mais quatro países africanos - Egito, Angola e África do Sul e Marrocos - o que será importante porque amplia mercados. O Egito, por exemplo, 80% do que ele consome de proteína animal vem do Brasil, especialmente frango. Como é um país muçulmano, com 100 milhões de habitantes, não consome carne de porco. Mas há 10% da população que é cristã e consome. Seria possível, neste caso, o adido agrícola brasileiro defender a exportação de carne de porco para essa fatia da população. O adido não só abre mercados, mas amplia os que já existem.
Com o governo Lula o senhor considera que as relações diplomáticas com a África foram retomadas ou o governo anterior manteve o intercâmbio?
João Bosco Monte: No governo Bolsonaro não existiu esse intercâmbio. Foi um governo péssimo em política externa, tanto que o ex-presidente nunca pisou em um país da África durante os quatro anos em que esteve no poder. O diálogo não existiu. Mas como você descarta um continente com essas dimensões? Não se olhou para a África como se deveria olhar. Agora, depois de quatro anos, temos de recuperar o tempo perdido. A vantagem é que, mesmo com essa pausa, ficou uma memória afetiva em relação ao Brasil. Em minhas viagens ouço muitas vezes que o Brasil é o parceiro preferencial da África, muito mais do que outros atores que surgiram nos últimos anos.
Fonte: Broadcast Agro.