21/Ago/2019
Segundo Gilberto Câmara, que é diretor do secretariado do Grupo de Observações da Terra (GEO). Vinculado às Nações Unidas, o órgão baseado na Suíça é a principal instituição internacional para monitoramento e observação da Terra, o sistema de monitoramento da Amazônia desenvolvido pelo Instituto Nacional de Pesquisas Espaciais (Inpe) não é apenas um produto único para realizar a fiscalização da floresta. Trata-se da melhor ferramenta disponível para esse tipo de atividade em todo o mundo, uma base de conhecimento que já inspirou a criação de sistemas similares em outros países e que hoje é reconhecida por toda a comunidade científica internacional, dada a rapidez e a confiabilidade de seus dados. Essa é a avaliação de uma autoridade máxima no assunto. Dono de um currículo extenso de dedicação à ciência, Câmara é membro sênior da Association for Computing Machinery (ACM), doutor "honoris causa" pela Universidade de Muenster (Alemanha) e cavaleiro da Ordem Nacional do Mérito da França. Já orientou 31 mestrados e 23 doutorados na área científica.
Em 2012, recebeu o "Global Citizen Award" da Global Spatial Data Infrastructure Association o "Pecora Award", da NASA. Ex-diretor do Inpe entre 2006 e 2013, tendo participado da criação do sistema Deter, a plataforma de informações que emite os alertas sobre o desmatamento, o pesquisador diz que a crise deflagrada pelo governo Bolsonaro em relação aos dados de desmatamento gerados pelo Inpe tem colocado não apenas a instituição pública em xeque, mas toda a credibilidade da ciência nacional e a imagem do próprio País, que pode passar a ser visto como um manipulador de informações que, nas últimas décadas, foram tratadas com total transparência, fossem os resultados positivos ou negativos sobre o avanço da devastação da maior floresta tropical do planeta.
Segue entrevista:
O sistema de detecção de desmatamento do Inpe tem problemas, como afirma o governo? É uma tecnologia limitada, de baixa qualidade?
R: O Deter é o melhor sistema para esse tipo de atividade em todo o mundo. O problema é que querem fazer uma discussão de coisas distintas. O Deter é um sistema que utiliza imagens de satélites e, por meio de uma metodologia, produz informação sobre o desmatamento, orientando as campanhas (fiscalizações em campo). Isso não pode ser comparado com um simples conjunto de imagens de satélite, como querem fazer. Criaram uma dicotomia entre um sistema e grupo de imagens. São coisas absolutamente diferentes. O sistema brasileiro é o melhor que temos hoje e, mais importante ainda, é suficiente para fazer o trabalho a que se propõe.
O governo falar em adquirir sistemas mais modernos e já testa produtos privados. Como o senhor avalia isso?
R: Hoje não existe um sistema no mundo que possa se equiparar ao Deter. Temos sistemas similares, mas com resolução de imagem menor e interpretação automatizada dos dados. Esses sistemas não mostram, por exemplo, quanto da floresta foi desmatada em cada município, em cada terra indígena ou área de proteção ambiental. Fora isso, o que existem são imagens de alta resolução, mas sem inteligência. Portanto, o Deter não tem paralelo no mundo e isso é reconhecido pelos órgãos internacionais.
O sistema poderia ser aprimorado pelo Inpe?
R: Como qualquer outro sistema, ele pode e deve evoluir. Desde que começou a ser usado, de 2005 para cá, a captação do Deter passou a ser 20 vezes superior, com uma precisão bem mais detalhada. É possível melhorar o Deter? Sim, claro. Sem isso, o Brasil deixa de ter uma estratégia de combate ao desmatamento? Não. O melhor da ciência mundial e brasileira hoje converge para o fato de que não há dúvidas de que os resultados do Inpe são confiáveis. O que existe de concreto é que o desmatamento na Amazônia está aumentando. A situação está se degradando e isso é óbvio. Os dados do Deter permitem afirmar, sem qualquer sombra de dúvidas, que há um recrudescimento no desmatamento da Amazônia, e onde isso está ocorrendo.
É necessário adquirir um produto paralelo para operar com o sistema do Inpe?
R: Em princípio, não tem nada de errado na possibilidade de o Ibama utilizar imagens do sistema de microssatélites Planet (produto privado que já é testado gratuitamente pelo órgão) para confirmar os alertas do Deter. Mas, a verdade é que esse mapeamento já é feito hoje pelo MapBiomas (um projeto colaborativo de mapeamento que reúne especialistas pesquisadores de universidades, institutos e organizações). Se o governo usasse esse sistema, não precisaria comprar outro produto. Agora, se a ideia for substituir o Deter, vão ter que criar um sistema novo que não existe hoje no mundo. E isso é absolutamente desnecessário e contraproducente. Não há necessidade racional. A ciência brasileira não precisa de uma confrontação falsa entre um sistema que está operando e novas imagens.
Como o senhor avalia a repercussão dos ataques aos dados informados pelo Inpe?
R: O que vemos hoje em relação ao Inpe é o mesmo tipo de prática que assistimos quando alguns países discordam do aquecimento global. Setores internacionais que patrocinam políticas contra as evidências do aquecimento, como a indústria do petróleo, sabem há décadas que o uso de petróleo causa mudança climática. Da mesma forma, a indústria do tabaco sabia, desde os anos 1950, que cigarro causa câncer. O fato de esses setores contrários saberem qual é o consenso científico e a explicação mais plausível para o aquecimento, por exemplo, faz com que fujam o tempo todo do debate aberto e racional. A intenção é desqualificar e derrubar os dados, sem oferecer nada no lugar.
O governo já sinalizou que pretende controlar a divulgação de informações do Inpe sobre o desmatamento. Como o senhor avalia isso?
R: Há uma estratégia de se negar o debate, só que essa estratégia é perdedora, não tem como ganhar. Amordaçar o Inpe é uma atitude contrária a todas as leis e regras que temos no País sobre a transparência do exercício público.
O governo sinalizou que pode fechar os dados públicos do Inpe a qualquer momento.
R: E o Ministério Público também pode sinalizar, a qualquer momento, que entrará com uma ação de improbidade administrativa contra um diretor do Inpe, porque ele violou a lei. Além disso, quais seriam as consequências de se fechar esses dados? A comunidade europeia passaria a acreditar que o desmatamento, agora, está sob controle? A população acreditaria nessas informações? Em 2008, também questionaram os dados do desmatamento do Inpe, mas depois deixaram que o trabalho prosseguisse porque viram que estavam corretos. Tanto naquela época, quanto hoje, o que está em jogo é a credibilidade do Brasil, e não do Inpe, em fornecer informações sobre uma parte da natureza que nos cabe cuidar. O Brasil já mostrou que não precisa desmatar a Amazônia para crescer. Nos últimos anos, diminuímos o desmatamento, enquanto dobramos a produção agrícola.
O Inpe pode perder o protagonismo neste tipo de monitoramento?
R: São 30 anos de trabalho do Inpe apresentando resultados, informações, dando acesso à comunidade científica internacional. Tem mil artigos científicos publicados que tomam os dados do Inpe como elemento de sua análise. A história mostra que essa credibilidade se constrói muito lentamente, mas também se destrói, como toda boa porcelana, muito rapidamente. Depois, não tem como emendar.
Fonte: Agência Estado.