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21/Ago/2019

Argentina: se oposição vencer terá grande desafio

O advogado Alberto Fernández teve a maioria obtida nas eleições primárias do domingo passado. Fernández foi chefe de gabinete de Néstor e Cristina Kirchner entre 2003 e 2008, mas deixou o cargo por divergências com a presidente. A partir daí, Fernández se transformou em um crítico ferrenho do segundo mandato de Cristina. “Não vou me calar diante da má administração da economia que levou a Argentina novamente a ter déficit fiscal”, declarou Fernández em uma entrevista na TV em 2012. No mesmo ano, disse a uma rádio argentina: “O que era perverso em outros tempos se transforma em valioso agora. Era perversa a nova reeleição de (Carlos) Menem e é boa a nova reeleição da Cristina. Por quê? Era perversa a corrupção menemista, mas não é perversa esta corrupção revolucionária”, provocou. Ele dava sinais de seu perfil político, que, segundo os analistas argentinos está longe de ser o de marionete de Cristina: “Eu estou disposto a debater qualquer coisa, o que não estou disposto é a obedecer porque eu faço política, não estou em um quartel. Sou muito condescendente, o que não sou é um estúpido”, exclamou Fernández em um popular programa de TV, também em 2012. Em 2017, o deputado nacional, neto de desaparecidos na ditadura militar e grande amigo dos Kirchners, Juan Cabandié, resolveu promover o reencontro entre Cristina e Fernández. A reconciliação ocorreu no mesmo ano das eleições legislativas nas quais a aliança de Mauricio Macri, Cambiemos, obteve um êxito. Começou ali a Frente de Todos, coligação que hoje reúne a ala peronista mais conservadora com os kirchneristas mais radicais. Quando em maio a Argentina ainda tentava entender a recém-anunciada fórmula Fernández-Cristina, a ex-presidente apontava uma qualidade do que poderá ser o próximo presidente: “O país não precisa de alguém como eu, que divido, mas alguém como você, que soma”, teria dito Cristina a Fernández em telefonema para convidá-lo a integrar sua fórmula. A ex-presidente responde a 12 processos na Justiça.

Se for eleita vice, ela conquistará automaticamente uma cadeira no Senado e manterá a imunidade parlamentar. Fernández faz uma campanha muito similar a sua personalidade. Sem grandes comitivas, aviões privados ou gurus de marketing, o advogado de 60 anos se vale mais de sua influência entre os políticos tradicionais do peronismo e do fato de ter sido homem de confiança de Néstor Kirchner.mNo punho esquerdo, leva uma fitinha vermelha, das que os mais supersticiosos costumam amarrar no braço fazendo pedidos. Fã de Lula, em julho viajou até Curitiba para visitar o ex-presidente. Disse que a visita era uma forma de “chamar a atenção para a injustiça com relação à detenção dele”. Na biblioteca de seu escritório, há livros sobre o ex-presidente. Ainda que Fernández seja considerado uma figura mais amável do que Cristina, não pode ser considerado um líder popular e carismático. Fernández filiou-se ao Partido Justicialista em 1983. Sua primeira candidatura ocorreu em 1999 à vice prefeitura de Buenos Aires. Perdeu. Em 2000, elegeu-se legislador com o partido Nuevo Encuentro. Mas abandonou o cargo em 2003, para assumir como braço direito de Néstor. A capacidade de negociar e dialogar com várias frentes políticas dissidentes talvez tenha sido o principal fator na decisão de Cristina de indicá-lo como candidato. “A grande estrategista é ela”, afirma o analista político Rosendo Fraga. “Fernández é o conector efetivo do kirchnerismo que atraiu e fez aceitável uma coalizão, pois representa uma figura moderada da qual o peronismo do interior do país aceita ser parte com uma aliança explícita ou por meio de uma cumplicidade passiva”, diz o pesquisador e especialista em comportamento eleitoral Patricio Tavalera.

Fernández não é um candidato poste, mas o candidato real, eleito por Cristina para ser o responsável por uma gestão que será muito complicada. Além disso, deve-se a ele a unidade do peronismo”, disse Julio Burdman, pesquisador do Instituto Argentino de Sociologia Política. Segundo Rosendo Fraga, “na Argentina, quando o peronismo se une, ganha” - em parte uma boa explicação para o sucesso obtido nas primárias há uma semana. A vantagem de 15 pontos sobre a coligação de Macri fez com que Fernández se transformasse “em uma figura aceitável para a liga de governadores peronistas que tem uma malha de eleitores que não são parte do grupo de kirchneristas tradicionais. E a sua candidatura está regida por dirigentes políticos e governadores que representam esse eleitor peronista tradicional de direita. Resta saber até quando vai a trégua Fernández-Cristina. E, principalmente, se vai ser suficiente para superar os meses de recessão que o país tem pela frente, caso a dupla seja eleita. Pode faltar bife em qualquer parte do mundo, menos em restaurante argentino, certo? Errado. Militar ou civil, o governo argentino muitas vezes limitou a venda interna de carne bovina para favorecer a exportação. Em outras ocasiões, como em 2006, 2014 e 2018, fez o contrário: restringiu as vendas externas para derrubar o preço e frear a inflação. Proibição de venda de carne, desemprego, aperto de cinto e problemas cambiais encheram as historietas de Mafalda, na crise de 1971, e renderam ao desenhista Quino o título de Homem do Ano da revista Panorama. Veda, palavra castelhana para proibição ou restrição, aponta uma das grandes marcas da política argentina ao longo de muitas décadas: a intervenção nos preços, no abastecimento e no comércio externo. Indica também dois desafios frequentes, os desarranjos cambiais e os surtos inflacionários.

Os grandes desafios econômicos do presidente Maurício Macri também parecem reimpressões de velhos e bem conhecidos problemas argentinos. Mas são reais, palpáveis e continuarão a assombrar o país no mandato seguinte, seja qual for o eleito. Pode haver retóricas diferentes, mas os dois candidatos e seus economistas conhecem os dados. Reservas cambiais caíram de US$ 65,34 bilhões, em abril, para US$ 44,69 bilhões, em maio. Com o susto do mercado, o câmbio saltou para mais de 60 pesos por dólar depois da prévia eleitoral. Houve recuo, depois, mas a cotação continuou distante dos 48 pesos de junho. A dívida externa saltou de 36,7% do Produto Interno Bruto (PIB), em 2017, para 51,8%, no fim de 2018. Como o governo tem usado financiamento estrangeiro para cobrir seus gastos, a dívida pública se mistura perigosamente com a dívida externa. Principalmente por isso, o país depende do financiamento negociado com o Fundo Monetário Internacional (FMI). Romper o acordo com o Fundo pode significar insolvência. Se o presidente, seja quem for, romper o acordo para agradar ao eleitorado, o agravamento da crise cambial e a piora das contas públicas levarão o país a completar mais uma volta no jogo do eterno retorno. Cristina Kirchner, herdeira de seu marido na Casa Rosada, beneficiou-se do fim de um ciclo desse tipo, mas desperdiçou essa vantagem. Foi eleita em 2007, dois anos depois de concluída uma longa e complicada negociação com os credores, e no ano seguinte à liquidação da dívida com o FMI. Havia condições para uma nova fase de crescimento. A oportunidade foi em parte aproveitada, mas o governo de novo relaxou a gestão das contas públicas, deu espaço à inflação e, depois de demitir o presidente do Banco Central (BC), ainda usou reservas cambiais para cobrir gastos públicos. Ainda assim, foi reeleita em 2011, manteve o estilo da política econômica e deixou a seu sucessor um país novamente em crise.

A alta dos preços era visível no dia a dia e nos cálculos de consultorias privadas, mas os números oficiais eram duvidosos, porque a presidente interferia nas estatísticas do governo. Como seu futuro crítico Jair Bolsonaro, ela se opunha à divulgação de números conflitantes com sua versão dos fatos. Cristina Kirchner, como seu marido Néstor, praticou um peronismo mais populista que o de alguns antecessores. O marido, no entanto, conseguiu reerguer a economia argentina, renegociar a dívida, consertar a complicada relação com o FMI e o Banco Mundial, e reatar o contato com o mercado financeiro. Quanto ao comércio externo, conseguiu uma relação tranquila e vantajosa com o Brasil de Luiz Inácio Lula da Silva, por meio de um acordo automotivo até hoje em vigor e de um quase fechamento do Mercosul para os mercados mais competitivos. Eleito em 2003, Néstor Kirchner logo se entendeu com Lula e com ele trabalhou para torpedear a formação da Área de Livre Comércio das Américas (Alca). Sem o Mercosul, o governo norte-americano logo negociou acordos comerciais com outros países da América do Sul. O bloco formado por Brasil, Argentina, Paraguai e Uruguai limitou-se a acordos com mercados em desenvolvimento, na maior parte pequenos, e manteve a conversação com a União Europeia, iniciada na década anterior e só liquidada neste ano (mas dependente, ainda, da aprovação legislativa de todos os participantes). Com Néstor Kirchner, a Argentina deu um passo adiante depois de uma fase extraordinariamente confusa, marcada por desastres como a quebra do Tesouro, o congelamento de depósitos, o fim da dolarização, o calote da dívida pública (interna e externa), uma explosão de preços e enorme instabilidade política.

A crise iniciada em 2001 resultou, em parte, do impacto causado pela desvalorização do real no começo de 1999 e pelo duro ajuste da economia brasileira. Mas os desarranjos maiores da Argentina eram mesmo internos. Em anos anteriores, a dolarização implantada pelo peronista Carlos Menem, eleito em 1989, havia produzido alguma disciplina. Com paridade entre o peso e o dólar, o Banco Central só poderia emitir moeda se houvesse acumulação de reservas. Essa camisa de força freou a inflação. Os preços comportados e alguma contenção fiscal deram espaço aos negócios, permitiram uma fase de prosperidade e Menem foi reeleito. Ao encerrar seu segundo mandato, em 1999, a economia já estava menos disciplinada, as contas públicas pareciam menos saudáveis e já se perguntava em quanto tempo a dolarização se esgotaria e seria preciso desvalorizar o peso. O balanço dos dois mandatos inclui a privatização do sistema elétrico e da companhia de petróleo. Externamente, houve a criação do Mercosul e o início das negociações da Alca e do acordo com a União Europeia. O antecessor de Menem, Raúl Alfonsín, eleito em 1983, havia conduzido o país no começo da redemocratização. A herança econômica do período militar havia sido desastrosa. O novo presidente governou com muita dificuldade num ambiente de hiperinflação, de instabilidade social e de inquietação nos quartéis.

Alfonsín acabou abandonando o posto antes do fim do mandato. Mas deixou, como parte importante do seu legado, o início da punição dos chefes da ditadura. Alguns pontos marcaram todos os governos argentinos desde a redemocratização e compõem a imagem da repetição. O peronismo foi importante em todos os momentos, pela filiação dos governantes ou pelo peso da oposição. O sindicalismo peronista, representado principalmente pela Confederação Geral do Trabalho (CGT) foi sempre um ator de relevo e uma referência para as definições de política. O populismo nunca desapareceu, embora praticado com intensidades variáveis. Presidentes com o mesmo rótulo político foram capazes de valorizar padrões liberais, como Carlos Menem, ou fortemente intervencionistas, como Néstor e Cristina Kirchner. As contas públicas nunca ficaram em ordem por muito tempo, as dificuldades cambiais foram recorrentes e a inflação, contida em alguns períodos, sempre retornou com grande problema. Nenhum governo foi esquerdista, na Argentina, embora o presidente Jair Bolsonaro possa pensar o contrário. Depois da redemocratização, figuras importantes da ditadura militar foram processadas e punidas. Nenhum governante civil defendeu a ditadura ou apontou um torturador como herói nacional. Fonte: Agência Estado. Adaptado por Cogo Inteligência em Agronegócio.