23/Jan/2020
O acordo comercial “Fase 1” dos Estados Unidos com a China pode estar dando algum alívio temporário às tensões da economia global, mas tem vários problemas que podem ter consequências duradouras. Há três dificuldades principais. A primeira é que o acordo não ataca pontos muito importantes do contencioso econômico entre Estados Unidos e China (ela ressalva que podem ser abordados em futuras fases), e, portanto, não significa de forma alguma o final da tensão. O segundo problema é que várias provisões do acordo já eram compromissos que a China assumiu ao entrar na Organização Mundial do Comércio (OMC) em 2001, mas não cumpriu. Aqui se colocam duas questões delicadas: se desta vez vai cumprir os compromissos, e, caso o faça, se será apenas com os Estados Unidos ou com os demais países também. O terceiro aspecto é que se trata de um acordo de comércio dirigido com um mecanismo de solução de controvérsias próprio, entre as duas maiores economias do mundo.
Como tal, é um forte golpe no multilateralismo e na Organização Mundial do Comércio (OMC). As regras da OMC permitem que países tenham acordos de preferências comerciais entre si, mas com regras, como envolver ao menos 85% das linhas tarifárias, e não pode ter, como no caso do acordo Estados Unidos-China, metas fixas e mútuas de aquisição de produtos (com os US$ 40 bilhões anuais que a China se compromete a comprar dos Estados Unidos de produtos agropecuários e de pesca). Esse tipo de determinação leva naturalmente à discriminação dos outros países em relação ao escolhido, e caracteriza o comércio dirigido. Na verdade, um arcabouço em que países possam fazer comércio dirigido entre si e estabeleçam regras próprias bilaterais de resolução de controvérsias criaria um sistema comercial internacional em que as nações mais fortes teriam grande poder de barganha sobre as mais fracas, tudo aquilo que vai exatamente na direção contrária ao sistema de comércio global aberto e justo defendido e encarnado pela OMC.
A reação dos demais players da economia global ao acordo Estados Unidos-China pode ser a de contestar ou aderir. Dificilmente haverá indiferença, porque a discriminação comercial afetará os outros atores, como a União Europeia. Aderir, no caso, seria tentar fazer acordos semelhantes com Estados Unidos, China ou outros blocos, num processo de balcanização do sistema mundial de comércio. Em relação ao Brasil especificamente, pode haver perdas em termos de exportação de soja para a China, mas o segmento de carnes preocupa mais. O Brasil vem construindo uma relação comercial significativa com a China nesse setor, que já se reflete em aumento substancial das exportações. Entre 2018 e 2019, as exportações brasileiras de carne bovina, suína e de frango para a China cresceram, respectivamente, 80%, 101% e 54%. Obviamente a peste suína africana (PSA) foi determinante, mas é um mercado que está sendo paulatinamente consolidado.
Agora, com o acordo Estados Unidos-China, o país asiático se comprometeu a facilitar as compras de carnes norte-americanas em relação às regras fitossanitárias chinesas. Essas regras na China são complexas e por vezes usadas com fins protecionistas. Assim, enquanto esse obstáculo será abrandado para os Estados Unidos, nada no acordo implica que o mesmo valerá para um país como o Brasil, que ficará com mais uma desvantagem. Outras partes do acordo que já eram condições não cumpridas para a China entrar na OMC, como a abertura de serviços financeiros também geram preocupação. Obviamente outros países se sentirão lesados se a China agora cumprir a promessa somente para serviços norte-americanos. E, na parte essencial da propriedade intelectual e da disputa tecnológica entre as duas potências, ligadas à questão da subvenção estatal a empresas nacionais, o acordo traz poucos compromissos, deixando o que talvez seja o principal contencioso, do ponto de vista da disputa de poder geopolítico, em aberto. Fonte: Agência Estado. Adaptado por Cogo Inteligência em Agronegócio.