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23/Oct/2024

Entrevista com Glaucia M. Souza e Dina Bacovsky

Mercados emergentes são fundamentais para a descarbonização do mundo, especialmente por meio dos biocombustíveis. No entanto, a falta de ação pode resultar em um aumento drástico das emissões. Esse alerta foi feito pelas presidentes da BBEST & IEA Bioenergy Conference, Glaucia Mendes Souza e Dina Bacovsky. A avaliação foi feita com base em dados que mostram a participação reduzida dos países emergentes nas emissões de gases do efeito estufa provenientes do transporte. Assim, com suas grandes populações, esses países apresentam um enorme risco de crescimento. A adoção de biocombustíveis poderia não apenas evitar o aumento das emissões, mas também proporcionar benefícios socioeconômicos.

As presidentes ressaltaram que os desafios para a adoção dos biocombustíveis em mercados emergentes incluem a necessidade de se expandir a produção de forma sustentável e a criação de políticas que incentivem essa transição. Elas destacaram, porém, que o Brasil tem experiência e infraestrutura adequadas para a produção de biocombustíveis. Além disso, afirmaram que mandatos de mistura são uma estratégia eficaz para reduzir as emissões sem a necessidade de investimento em novas infraestruturas. Segue a entrevista com a presidente do Programa de Colaboração Tecnológica do IEA Bioenergy, Dina Bacovsky, e a coordenadora do Programa de Bioenergia da Fundação de Amparo à Pesquisa do Estado de São Paulo (Fapesp), Gláucia Mendes Souza:

Como vocês veem o papel dos biocombustíveis na transição energética global, especialmente considerando os compromissos assumidos no Acordo de Paris e as discussões no G20? Quais avanços recentes nas tecnologias de biocombustíveis estão ajudando a acelerar esse processo?

Glaucia Mendes Souza: Os biocombustíveis são considerados essenciais para os esforços de descarbonização. Para acelerar o uso de bioenergia, a maneira mais fácil - e mais comumente usada - é aumentar a mistura de biocombustíveis aos combustíveis fósseis. Temos 58 países usando bioetanol como combustível em sua gasolina e 48 países usando biodiesel, muitos no Sul global e vários com o uso de biocombustíveis totalmente implementado. Os mandatos de mistura são a maneira mais fácil e rápida de reduzir as emissões sem a necessidade de investir em nova infraestrutura ou novos modelos de veículos. Os mesmos motores usados em automóveis hoje podem lidar com misturas de biocombustíveis de até 10% sem a necessidade de adaptações. Analisamos no Task 39, um grupo de trabalho da IEA Bioenergy, apresentado na reunião de alto nível do G20 em Foz do Iguaçu, como os mercados emergentes podem contribuir para o esforço dos biocombustíveis. Eles precisarão crescer 2,5 vezes a produção atual em 2030. Isso significará substituir quase 800 milhões de toneladas de CO2 fóssil, o que significa 10% das emissões globais de transporte de GEE (gases do efeito estufa) de hoje. Em nosso estudo, avaliamos políticas, emissões, viabilidade técnico-econômica, mercados e disponibilidade de terras.

Dina Bacovsky: As mudanças climáticas estão acelerando e já começamos a ver os efeitos em todo o mundo. Precisamos mudar para um sistema de energia neutro em carbono o mais cedo possível. Em 2021, a Agência Internacional de Energia (AIE) publicou o primeiro roadmap global sobre como atingir emissões líquidas zero de CO2 do setor de energia até 2050. A bioenergia é um meio crucial para manter o aquecimento global abaixo de 1,5 °C até o final do século: no roadmap da AIE, ela deve fornecer de 15 a 20% do suprimento global de energia em 2050.

O Brasil tem uma longa história com etanol e biocombustíveis. Como o país pode fortalecer ainda mais sua liderança neste campo em discussões internacionais sobre descarbonização, como as que ocorrerão no G20 em novembro? O que o Brasil pode oferecer a outros mercados emergentes que também buscam implementar tecnologias de bioenergia?

Glaucia Mendes Souza: O Brasil pode oferecer know-how, tecnologias e ajudar outros países a definirem as melhores políticas. O País tem uma estrutura de políticas que pode ser adaptada para estimular o crescimento em muitos mercados. Uma estrutura de políticas de biocombustíveis de baixa intensidade de carbono, como temos com o programa Renovabio, pode ser considerada por outros países para estimular a produção de biocombustíveis e recompensar a atual economia de energia de baixo carbono. Esta iniciativa brasileira tem um mecanismo para recompensar os produtores com créditos de descarbonização. É importante levar em consideração que Argentina, Brasil, Colômbia e Guatemala fornecem 29% do etanol global e 24% do biodiesel do planeta. Juntos, esses países evitam 63 milhões de toneladas de dióxido de carbono equivalente por ano. Caso Argentina, Colômbia e Guatemala também tenham programas semelhantes ao Renovabio, juntos os quatro países (Brasil incluso) poderiam totalizar créditos de carbono que, se negociados a US$ 10/ton CO2eq, poderiam gerar US$ 1,2 bilhão/ano. Há também outro lado positivo na contribuição desses países. Eles estão produzindo alimentos, rações, combustíveis e energia, tudo em paralelo. Existem muitos exemplos dessa simbiose da produção de alimentos e energia. Ao usar cana-de-açúcar e milho, esses países contribuem para diversas indústrias produtoras de açúcar, grãos de destilaria, bioetanol e, finalmente, bioeletricidade, que é distribuída para a rede quando os resíduos dessas plantações são reciclados, enquanto com soja e palma, é possível produzir alimentos, ração animal, combustíveis e energia elétrica em paralelo. O mesmo ocorre com a soja. E, embora o principal produto obtido com essa cultura seja a proteína, também podemos ter biodiesel como subproduto, bem como bioeletricidade a partir de resíduos reciclados.

Quais são os principais desafios que vocês veem para a adoção de biocombustíveis em mercados emergentes? E há algum mercado emergente atualmente se destacando em termos de inovação e crescimento na produção de biocombustíveis?

Glaucia Mendes Souza: Se expandirmos nossa análise (da Argentina, Brasil, Colômbia e Guatemala) e também levarmos em consideração Etiópia, África do Sul, China, Índia, Indonésia, Malásia e Tailândia, esses países representam 47% da população mundial e apenas 27% das emissões de CO2 do setor de transporte, globalmente. No entanto, como mercados emergentes, esperamos que essas emissões de GEE possam aumentar drasticamente se não abrirmos caminho para alternativas para combustíveis fósseis. Se esse grupo de países tivesse emissões de CO2 per capita no setor de transporte da média da OCDE, as emissões mundiais do setor mais que dobrariam. Para duplicar a produção de biocombustíveis nesses 11 países, precisaríamos converter cerca de 5% de suas pastagens. O tempo de retorno em estoques de carbono do solo é de apenas 2 a 3 anos e há benefícios adicionais ao fazer isso. Os biocombustíveis podem trazer oportunidades para aumentar empregos e receitas locais. Os biocombustíveis também têm um potencial de aquecimento global menor do que os combustíveis fósseis em todos os cenários que estudamos, especialmente em biocombustíveis produzidos em indústrias que são autossuficientes em termos de energia, como o etanol de cana-de-açúcar que usa bagaço como combustível de caldeira e o biodiesel de óleo de palma que usa cachos de frutas vazios. É importante notar que esses países podem contribuir com uma produção adicional de 45,7 bilhões de litros de biodiesel e 64,7 bilhões de litros de etanol (dos quais 55% poderiam vir da duplicação do etanol no Brasil). Isso tornaria possível uma mistura de 10% de biocombustíveis a combustíveis fósseis a serem usados em todos esses países.

Como o Programa de Colaboração em Tecnologia de Bioenergia da IEA vê o futuro dos biocombustíveis como parte de uma matriz energética global mais limpa?

Dina Bacovsky: A bioenergia fornece calor renovável para descarbonizar indústrias e edifícios. Os biocombustíveis também têm um papel crucial no transporte. O roteiro de emissões líquidas zero da IEA até 2050 exige que a produção e o uso de biocombustíveis líquidos para transporte quadrupliquem até 2050 em relação aos níveis de 2020. Para atingir isso, a produção convencional de etanol e biodiesel precisa crescer ainda mais e ser complementada por um forte crescimento de biocombustíveis avançados (produzidos a partir de uma gama mais ampla de matérias-primas, incluindo resíduos e resíduos agrícolas e florestais). Após 2030, espera-se que o uso de biocombustíveis mude do foco atual no transporte rodoviário para aplicações pesadas de longa distância, ou seja, em direção a caminhões, aviões e navios. A indústria de biocombustíveis está trabalhando continuamente para desenvolver ainda mais tecnologias de produção de biocombustíveis, com foco em matérias-primas, resíduos e refugos de baixa qualidade. Como resultado, nenhuma terra adicional precisa ser cultivada para produzir esses biocombustíveis, e as emissões de GEE podem ser minimizadas. Algumas tecnologias até permitem atingir emissões negativas, por exemplo, quando o CO2 que é coproduzido com o biocombustível é capturado e armazenado.

Inovações como Combustíveis Sustentáveis para Aviação (SAF) têm ganhado destaque. Qual é o potencial dessas tecnologias para transformar o setor de transporte e quais são os principais desafios?

Glaucia Mendes Souza: A questão da competitividade de custos pode ser abordada aumentando a produtividade das colheitas. Novas variedades de cana de açúcar que estão atingindo mais de 200 toneladas/ha e ainda têm açúcar estão mostrando que o SAF pode ser competitivo contra o querosene fóssil.

Dina Bacovsky: Até agora, a única solução comercial para descarbonizar a aviação de longa distância é o SAF produzido a partir de óleos e gorduras (HEFA). No entanto, o potencial de matéria-prima para óleos e gorduras é muito pequeno para dar suporte a toda a aviação, portanto, novas tecnologias que podem processar uma gama muito mais ampla de matérias-primas precisam ser desenvolvidas e implantadas. Os custos são um grande desafio, pois os SAF são significativamente mais caros do que os combustíveis convencionais (fósseis) para a aviação.

A descarbonização requer investimentos significativos. Quais são as principais barreiras financeiras ao crescimento dos biocombustíveis e como essas barreiras podem ser superadas?

Dina Bacovsky: Os biocombustíveis em geral permanecerão mais caros do que os combustíveis fósseis, certamente para aviação e transporte marítimo, e a disposição de pagar mais do que pelos combustíveis fósseis é limitada. Mecanismos de política são necessários para superar essa diferença de custo, por exemplo, por meio de sistemas de obrigação e/ou precificação de CO2. Algumas novas tecnologias (como gaseificação) têm altos requisitos iniciais de capex; os atores da indústria terão que trabalhar juntos para atrair financiamento público e investimentos.

Como você vê o futuro da bioenergia e dos biocombustíveis até 2030, especialmente em termos de contribuição para as metas da Agenda 2030 da ONU?

Dina Bacovsky: Pesquisa da IEA Bioenergy descobriu que 15 dos 17 ODS (Objetivos de Desenvolvimento Sustentáveis da Organização das Nações Unidas ONU) estão direta ou indiretamente ligados à produção e uso de biomassa. Um setor de bioenergia incorporado à bioeconomia pode alcançar a diversificação do fornecimento de energia e melhorar o acesso à energia. Ele também pode dar suporte a práticas agrícolas sustentáveis e manejo florestal, reduzindo o risco de perdas devido a tempestades, infestações de insetos ou incêndios florestais, diminuindo a degradação da terra e do ecossistema, impulsionando o desenvolvimento econômico em áreas rurais, melhorando o gerenciamento de resíduos e criando empregos. Ao implantar ainda mais bioenergia e biocombustíveis sustentáveis, podemos contribuir significativamente para atingir as metas da Agenda 2030 da ONU.

Fonte: Broadcast Agro.