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31/Oct/2025

Dificuldades do tratamento da obesidade no SUS

A recusa da Comissão Nacional de Incorporação de Tecnologias no Sistema Único de Saúde (Conitec) em incluir na rede pública de saúde a liraglutida (princípio ativo do Saxenda) e a semaglutida (presente no Wegovy), conhecidos como canetas para obesidade, reacendeu um debate que vai além dos custos. O órgão do Ministério da Saúde nem sequer reavaliou a sibutramina, opção mais barata proposta pela Associação Brasileira para o Estudo da Obesidade e Síndrome Metabólica (Abeso) para pacientes sem comorbidades. Segundo a endocrinologista Maria Edna de Melo, do Grupo de Obesidade e Síndrome Metabólica do Hospital das Clínicas e diretora da Abeso, há membros da Conitec que afirmam que não adianta tratar se as pessoas continuam expostas a ultraprocessados.

Condicionar o tratamento a um sistema alimentar ideal é a manifestação mais nua e crua da gordofobia, que é estrutural. Falta uma linha de cuidado estruturada para a obesidade. Isso explica haver seis medicamentos aprovados pela Anvisa e não ter nenhum disponível no SUS. Essa negligência é uma forma de preconceito institucionalizada. A Conitec negou a incorporação da liraglutida e da semaglutida ao SUS, alegando custo elevado. E não chegou a avaliar a sibutramina, que é mais barata. No fim do ano passado, a Abeso solicitou à Conitec a incorporação de sibutramina para pacientes sem comorbidades (sem diabetes e hipertensão) e liraglutida e semaglutida para o paciente no extremo, que teve um AVC, um infarto, que é de alto risco e o mais caro para o sistema. Os dois pedidos foram negados.

No caso da sibutramina, a justificativa foi de que já tinha sido avaliada previamente em 2019. Mesmo que tenha um custo menos elevado do que as famosas canetas. Quando a Conitec faz os cálculos, considera toda a população obesa. E a obesidade é muito prevalente, então, mesmo uma medicação barata, gera alto impacto orçamentário. Mas, ignorar o tratamento tem custo alto para o sistema. Até porque a obesidade tem repercussão em muitas outras doenças. Uma medicação que leva a uma perda de peso de 10% reduz glicemia, depressão, ansiedade. Mas, isso não pode ser utilizado. Só entra na conta aquilo que tem estudo clínico randomizado.

A sibutramina, por exemplo, leva a uma perda de peso de 10% até 15%, e esse tipo de resultado reduz a apneia do sono. Mas, não é possível fazer essa relação porque não há esse dado extrapolado para a sibutramina. Porque, ao desenhar um estudo clínico dos medicamentos, se considera apenas um “n”, e não os vários benefícios associados. Um estudo mostra perda de peso, o outro mostra redução de diabetes. A correlação é óbvia, mas não está no mesmo estudo clínico randomizado. Por isso é importante que a rigidez científica se encontre com a racionalidade.

Um médico do SUS pode prescrever sibutramina?

Maria Edna de Melo: Não, para tratamento de obesidade não pode. Por isso, muitos médicos acabam prescrevendo os análogos caros, porque não exigem receituário. E o que faz o paciente de baixa renda ao receber uma receita de Mounjaro ou Wegovy? Fica frustrado, porque chega à farmácia e vê que custa o salário inteiro. Às vezes, compra uma caneta, mas não consegue manter o tratamento. É uma sequência de erros, fruto da falta de uma linha de cuidado estruturada.

Como é em outros países?

Maria Edna de Melo: No Reino Unido, na Escócia e em outros países europeus, eles definem perfis para o tratamento, como IMC acima de 35, idade acima de 45, alto risco cardiovascular. Assim, reduzem para o perfil de paciente mais grave e conseguem viabilizar acesso. No Brasil, o governo deveria negociar com as farmacêuticas preços menores para ampliar a oferta.

O estigma de que obesidade não é doença, mas falta de força de vontade, pesa nas decisões públicas?

Maria Edna de Melo: Muito. Tem membro da própria Conitec que diz: “Não adianta tratar, se as pessoas continuam expostas a ultraprocessados”. Isso é verdade, mas não pode ser argumento para negar tratamento. A cesta básica inclui produtos que não deveriam estar ali, e o subsídio à indústria de alimentos é muito maior que o à agricultura familiar. Condicionar o tratamento a um “sistema alimentar ideal” é a manifestação mais nua e crua da gordofobia, que é estrutural. O que explica haver seis medicamentos para emagrecer aprovados pela Anvisa e não ter nenhum disponível no SUS? Essa negligência é uma forma de preconceito institucionalizada.

A senhora participou da elaboração de um documento sobre obesidade no contexto de emergência. O que ele mostra?

Maria Edna de Melo: Quando chega um paciente com obesidade grave, muitas vezes ninguém sabe o que fazer. É difícil conseguir acesso venoso quando tem suspeita de um tromboembolismo fulminante, e é preciso ficar atento para saber se esse paciente vai caber no tomógrafo. Não é simples chegar à dose adequada dos antibióticos ou medicamentos para sedar antes de intubação. O corpo do paciente impõe desafios técnicos e até nesse momento há preconceito: ninguém está preparado para cuidar.

E a prevalência da obesidade segue crescendo.

Maria Edna de Melo: Sim. É um crescimento descontrolado. Antes se falava em “reduzir”, hoje estamos mais humildes e a meta é “desacelerar”.

E quanto a crianças e adolescentes com obesidade?

Maria Edna de Melo: Quando o caso é grave, o acesso à atenção especializada é ainda pior que para adultos. E os únicos medicamentos aprovados para essa faixa etária são os análogos de GLP-1, de alto custo. Ou seja, é uma população ainda mais à margem.

Além do acesso, há o preconceito desde cedo.

Maria Edna de Melo: Em todo ambiente, o paciente com obesidade é estigmatizado. O olhar é de julgamento: “Tão bonita de rosto, como chegou a esse corpo? Como essa pessoa não se cuida?” Essas pessoas sofrem preconceito até dentro do serviço de saúde. Vai no ortopedista e ouve: “Perca 20 quilos e volte para operar o joelho”. Se é uma mulher que busca aconselhamento reprodutivo, escuta: “Emagreça para fazer fertilização”. Isso é devastador. E nas crianças e adolescentes é pior, porque são ainda mais sensíveis.

Isso acaba afastando a pessoa do tratamento médico.

Maria Edna de Melo: Exato. Apenas 13% das pessoas com obesidade procuram o SUS. Isso de forma geral. Procurar o SUS para tratar obesidade é ainda mais raro. A gordofobia estrutural afasta os pacientes. Se alguém chega dizendo “preciso tratar minha obesidade”, recebe uma lista de proibições e a recomendação de caminhar. Mas e na vida real? A mulher da periferia, às 5h30, já está pegando o segundo transporte para trabalhar. O que mostra que a obesidade também tem recorte de gênero e raça. O aumento da obesidade é maior entre as mulheres, especialmente negras e periféricas. A branca da classe A está lá, magra, com seu Mounjaro, com seu Wegovy.

A senhora critica o foco em práticas sem evidência no SUS, como tai chi chuan. O que realmente funciona na mudança de estilo de vida?

Maria Edna de Melo: As melhores evidências vêm dos programas intensivos de mudança de estilo de vida, com acompanhamento semanal. A nutricionista discute temas, orienta automonitoramento do peso e da alimentação, estimula registro e atividade física. Mas exigem sustentação a médio e longo prazos. Hoje, seria possível aplicá-los até de forma virtual, com custo menor. Mas esses programas não existem no SUS. O que temos é uma doença com aumento descontrolado de prevalência e cujas terapias eficazes estão fora do alcance da maioria.

Fonte: Broadcast Agro.