05/Jun/2025
Em meio à disputa comercial entre China e Estados Unidos, o presidente do Instituto Mato-Grossense da Carne (Imac), Caio Penido, vê uma oportunidade para o Brasil ampliar o seu papel como fornecedor estratégico de carne bovina para o gigante asiático, não só em volume, status em que já está consolidado, mas também em valor. Em entrevista, ele analisa os impactos do conflito sobre o fluxo global de proteína animal, avalia a força da agenda verde chinesa e defende que o País tem condições de ampliar sua presença no mercado com uma carne de maior valor agregado, graças à produção sustentável a pasto e à biodiversidade preservada no território nacional. O Brasil deve ocupar o espaço aberto pela perspectiva de menor participação da carne dos Estados Unidos no mercado chinês. Não à toa, o Imac intensificou nas últimas semanas sua estratégia de internacionalização da pecuária do Estado, com foco na sustentabilidade.
O principal chamariz é o Passaporte Verde, programa que busca comprovar a produção responsável da carne bovina de Mato Grosso. A China, que atende por 43,3% das exportações de carne bovina do Estado, está no centro da estratégia. Por lá, o Imac participou de reuniões em Nanjing e Hangzhou, mirando cidades do interior e buscando aproximar a carne de Mato Grosso do consumidor. Em meio à ofensiva do Imac, Penido também avaliou que o momento exige cautela diante da possibilidade de recessão global, além de foco na diversificação dos destinos da proteína brasileira. Até por isso, a missão da instituição também passou, recentemente, por Holanda, Bélgica e França, com destaque para a Assembleia da Organização Mundial de Saúde Animal, em que o Brasil foi reconhecido, na semana passada, como área livre de febre aftosa sem vacinação, conquista que abre portas para novos mercados e fortalece a imagem da pecuária nacional. Segue a entrevista:
Como a tensão comercial entre China e Estados Unidos pode afetar o fluxo global de carne bovina? De que forma o Brasil pode lidar com esse cenário?
Caio Penido: Pelo que aconteceu até agora, na minha visão, para o Brasil está sendo o menos pior possível. Estamos entre os mais bem posicionados, com a menor taxa de impacto, e somos os únicos concorrentes dos Estados Unidos em escala na produção de carne e grãos. Então, nos tornamos uma grande alternativa. Por um lado, isso é muito bom. Por outro lado, a China já vinha reduzindo um pouco as compras. Há uma tendência de redução populacional ali, que antes era compensada pelo aumento da renda per capita, que fazia as pessoas consumirem mais carne. Agora, com uma possível recessão econômica, esse aumento de consumo pode não se sustentar. Não sei como isso vai se estabilizar. No primeiro momento, com os Estados Unidos saindo, em meio à guerra comercial, o Brasil entra. Mas agora precisamos ver como será o consumo da China. Para a carne bovina, a situação é diferente do frango e do porco. A China compra soja e produz frango e porco quando quer. Já a carne bovina, eles não têm pasto nem área suficiente para todo o processo de engorda. Essa é uma vantagem da carne bovina: ela precisa ser produzida majoritariamente fora da China.
O Brasil, porém, não será o único a buscar ampliar a presença no mercado chinês. Como podemos superar essa disputa?
Caio Penido: Temos vantagens em relação aos nossos concorrentes: Estados Unidos, Austrália, Argentina e Uruguai. Todos já têm um alto grau de intensificação, com muito gado confinado e clima temperado. Nós, além do clima tropical, produzimos uma carne mais sustentável nesse novo paradigma global. A China é pressionada a adotar uma agenda sustentável, e uma forma de mostrar isso é exigir pré-requisitos nas commodities. O Brasil já atende a esses pré-requisitos: nossa carne conserva biodiversidade por lei, temos mais de 60% do território com vegetação nativa, algo que nossos concorrentes não têm. Além disso, nosso gado ainda é criado a pasto, o que traz benefícios de bem-estar animal e sustentabilidade. E ainda podemos intensificar a produção. Essa é a grande oportunidade que vejo: acompanhar o consumo da China com lotes de carne e, agora, a chance de conquistar o mercado de carne gourmet que hoje é dominado pelos EUA.
Sob este aspecto, o Brasil, de fato, é conhecido por vender uma carne mais "commoditizada" à China e a outros mercados. Há potencial para a entrada de uma carne gourmet do País em outros mercados?
Caio Penido: Não acho que a raça angus americana seja melhor que o nosso nelore ou o cruzado angus-nelore. Na minha opinião, o cruzado é melhor que o angus puro americano, que é uma carne sem sabor, que precisa de molho. Nosso cruzado e nosso nelore são carnes saborosas, que comemos só com sal. É a hora de ensinar isso aos chineses. Mas para isso precisa haver uma articulação, principalmente das indústrias frigoríficas, que são os vendedores globais. Com essa crise tarifária, surge a oportunidade de entrar no mercado chinês com o cruzado como carne de alto valor agregado. Podemos aumentar essa produção no Brasil infinitamente, intensificando e até triplicando a produção. O mercado asiático e o Oriente Médio estão consumindo mais, e é uma grande oportunidade para fidelizá-los, continuando a exportar o que já exportamos, mas também incluindo uma carne mais gourmet para capturar valor.
A China está realmente comprometida com a agenda verde?
Caio Penido: Já visitei a China várias vezes ao longo de 30 anos, e a transformação que vi é impressionante. De um país com muita pobreza e cidades desorganizadas, a China se tornou um exemplo de urbanização eficiente e políticas públicas de grande impacto, especialmente na sustentabilidade. No começo, eu tinha dúvidas sobre o comprometimento real deles com a agenda verde, achava que era só discurso. Mas o governo centralizado e estável do Xi Jinping permite que medidas avancem rapidamente e com continuidade. A descarbonização da frota é uma revolução concreta: a maioria dos ônibus e táxis já é elétrica, e há cada vez mais carros elétricos nas ruas, o que, considerando a escala da população, é um avanço enorme. No campo, eles também investem pesado no plantio de florestas, inclusive em áreas desérticas, usando tecnologias modernas para irrigação e retenção de água.
A agenda ambiental chinesa pode influenciar a pecuária brasileira do mesmo modo que o "boi China" influenciou a tecnificação das fazendas por aqui?
Caio Penido: O "boi China", de 30 meses, foi uma decisão comercial que teve um impacto climático muito maior do que todo o Acordo Verde da Europa. Uma decisão comercial que promoveu a intensificação sustentável, reduziu a idade de abate - um boi que ficava cinco anos emitindo gases do efeito estufa, agora é abatido com dois anos. Menos da metade das emissões para produzir a mesma carne. O balanço de carbono por arroba melhorou muito. E o produtor percebeu: quanto mais gira, mais ganha. Melhor ter um boi de dois anos do que de cinco. Aí ele investe mais em genética, nutrição, gestão. Coloca mais cabeças por hectare, faz piquete rotacionado, aproveita melhor o capim. Esta foi uma questão que capitalizamos pouco. Brasil e China poderiam ter capitalizado mais. Esse assunto ficou restrito ao agronegócio, mas poderia ter gerado crédito de carbono. Ao promover essa redução de emissões, houve, sim, uma geração de crédito de carbono. Não tinha mercado de carbono na época, mas hoje talvez já tivesse. A China pode seguir nessa linha da comercialização. E é isso o que estamos tentando, com o Passaporte Verde.
Como você vê a influência da Europa nas regras do comércio internacional de carnes?
Caio Penido: A Europa está enfraquecida. Antes, ela ditava as regras com os Estados Unidos por trás, mas agora está perdendo influência. Quando criaram legislações como a de não importar produtos ligados ao desmatamento, perceberam que foi um tiro no pé, até seus próprios produtores não conseguiam cumprir. Com o estremecimento da relação EUA-China, a América Latina se torna um parceiro estratégico do bloco europeu, especialmente o Brasil. Acho que seremos mais valorizados nessa relação com a Europa, e podem surgir mercados interessados em carne gourmet sustentável. Talvez possamos exportar carnes certificadas para a Europa, com selos de baixo carbono, conservação da fauna e créditos de carbono e biodiversidade.
Diante da possibilidade de uma recessão global, estimulada pela guerra comercial, isso pode atrapalhar os planos do exportador brasileiro de carne bovina?
Caio Penido: Temos de esperar para ver como se estabiliza. Se o Brasil ganha mercado dos EUA na China, mas se a recessão reduzir o consumo, o que sobrará para nós? Isso acende um sinal amarelo. Por exemplo, sempre se fala que temos 40 milhões de hectares com algum estágio de degradação que poderíamos intensificar. Mas se todo mundo começar a produzir mais sem demanda, os preços das commodities caem, o que é negativo para o setor. Então, é momento de observar como essa situação se estabiliza. Além disso, não podemos apostar todas as fichas na China.
Além da China, quais outros mercados o Brasil deve focar para exportar carne bovina?
Caio Penido: Precisamos buscar outros mercados, como Indonésia, Egito, Nigéria, Paquistão, países com crescimento populacional e demanda por proteína. A China tem seus movimentos, como investigações de salvaguarda, que podem ser uma forma de negociar preços mais baixos. O Brasil tem tentado diversificar, abrindo mercados no Oriente Médio, no Sudeste Asiático e na África. Mas se ocuparmos muito o espaço dos EUA na China, podemos chamar atenção negativamente. Hoje, cerca de 50% das nossas exportações de carne vão para a China. Se eles pararem de comprar, é um colapso. Temos que aproveitar a parceria enquanto é boa, mas também convencer a China de que nossa carne tem diferenciais de sustentabilidade que outros não têm. Se a gente fidelizá-los por isso, será uma amarração estratégica.
Fonte: Broadcast Agro.