01/Jun/2023
Em derrota do governo, a Câmara aprovou, na terça-feira (30/05), o projeto de lei que define um marco temporal para a demarcação de terras indígenas no País. A tese é defendida pela Frente Parlamentar da Agropecuária (FPA), que pressionava o presidente da Casa, Arthur Lira (PP-AL), a pautar o tema. A bancada ruralista conta com 300 deputados. Foram 283 votos favoráveis, 155 contrários e 1 abstenção. Depois da análise dos destaques, o texto seguirá para análise do Senado. Pelo marco temporal, uma terra indígena só poderia ser demarcada se fosse comprovado que os índios estavam no local na data da promulgação da Constituição, no dia 5 de outubro de 1988. Quem estivesse fora do local nesta data ou depois dela, não poderia pedir a demarcação. Os povos indígenas são contrários à proposta de se estabelecer uma "data" para esta ocupação. A liderança do governo e os partidos de esquerda apoiaram um requerimento para que o projeto fosse retirado da pauta de votação, mas foram derrotados no plenário.
Os deputados aceleraram a tramitação do PL com o intuito de se anteciparem ao julgamento do Supremo Tribunal Federal (STF) sobre a demarcação das terras indígenas, marcado para o dia 7 de junho. Representantes do agronegócio afirmam que a ausência de uma data para demarcação gera insegurança jurídica no setor e defendem que a demarcação não seja "aleatória" e tenha a devida indenização aos proprietários das áreas desapropriadas. Os deputados haviam aprovado na semana passada um requerimento para urgência na tramitação do projeto de lei, o que dispensou a passagem da matéria por comissões. Na ocasião, a sessão precisou ser encerrada no plenário após protestos de parlamentares de esquerda, que chamaram os que votaram a favor de acelerar a tramitação do projeto de “assassinos do povo indígena”. Na votação da urgência, a liderança do governo liberou a base aliada para se posicionar como quisesse, apesar de o mérito do texto ir na contramão da bandeira do Palácio do Planalto, de indígenas e de ambientalistas, que fazem parte da base de apoio do presidente Luiz Inácio Lula da Silva.
O ministro das Relações Institucionais, Alexandre Padilha, afirmou que a decisão de liberar a bancada tinha a ver com o tempo de votação, mas não significava que os parlamentares seriam favoráveis ao mérito do PL. Ele reforçou que Lula é crítico ao texto. Mas, no próprio governo há divergência no posicionamento sobre o marco temporal. A ministra dos Povos Indígenas, Sônia Guajajara, é contrária ao projeto. Para ela, trata-se de um projeto de lei gravíssimo, que paralisa a demarcação das terras indígenas e não contribui em nada para reduzir as emissões de gases do efeito estufa e combater as mudanças climáticas. O ministro da Agricultura, Carlos Fávaro, se manifestou favorável à referência de uma data limite para demarcação. A aprovação do marco temporal se insere em um contexto de revezes para o governo na área ambiental. Na semana passada, a Câmara anulou alterações feitas pelo Senado em uma medida editada ainda no governo Bolsonaro e voltou a permitir a instalação de linhas de transmissão de energia, gasodutos e sistema de abastecimento público de água na Mata Atlântica sem estudo prévio de impacto ambiental ou compensações. Lula ainda pode vetar esse trecho do texto.
Além disso, o parecer do relator da Medida Provisória da Esplanada, deputado Isnaldo Bulhões (MDB-AL), retirou a Agência Nacional de Águas (ANA) e a Política Nacional de Recursos Hídricos da alçada do Ministério do Meio Ambiente. Essas atribuições foram transferidas para o Ministério da Integração e Desenvolvimento Regional. O Cadastro Ambiental Rural (CAR), por sua vez, foi deslocado da pasta comandada por Marina Silva para o Ministério da Gestão. Já a demarcação de terras indígenas foi transferida da pasta de Sônia Guajajara para o Ministério da Justiça. As mudanças no texto original da MP foram articuladas pela bancada ruralista. Deputados também afirmam que a votação de pautas que contrariam as posições do Executivo, como o próprio marco temporal, é reflexo da insatisfação da Câmara com a demora na liberação de cargos e emendas. Após a aprovação do novo arcabouço fiscal na Casa, líderes partidários preveem uma piora do clima em relação ao Palácio do Planalto.
A votação do marco temporal deve ser apenas a primeira de muitas propostas que contrariam o governo serem votadas pelos deputados. Nos bastidores, a avaliação é de que o governo precisa resolver com urgência as reclamações sobre emendas, tratamento e espaço a parlamentares para garantir estabilidade. O Projeto de Lei 490/2007, que torna necessária a ocupação de uma terra indígena até 5 de outubro de 1988 para que ela possa ser demarcada, inclui outros pontos polêmicos, que contribuíram para dividir o Congresso. Embora a chamada tese do marco temporal seja o principal item, o PL altera políticas indigenistas adotadas há décadas no País. Uma delas reacende a possibilidade de contato com povos que vivem em isolamento voluntário, prática que marcou a relação da ditadura com indígenas. A proposta implementa também a possibilidade de contato com indígenas isolados para ações de “utilidade pública”, inclusive por meio de “entidades particulares, nacionais ou internacionais”, contratadas pelo Estado.
O texto não especifica quais seriam as atividades de utilidade pública admitidas. Por se tratar de expressão genérica, parlamentares e movimentos contrários ao projeto temiam um contato forçado sob a justificativa de realização de obras e até de missões religiosas em localidades habitadas por povos sem contato com a sociedade do entorno. A política de não contato com povos isolados predomina no Brasil desde o fim dos anos 1980. Com condições biológicas específicas, grupamentos indígenas podem ser exterminados por doenças como a gripe e o sarampo. A Constituição de 1988 reconhece “organização social, costumes, línguas, crenças e tradições” dos indígenas, e o Brasil é signatário de normas internacionais que reconhecem a autodeterminação dos povos indígenas. Na ditadura, milhares de indígenas morreram em consequência da estratégia de atração e contato adotada para viabilizar estradas e hidrelétricas.
Criador do departamento de índios isolados da Funai em 1987, o indigenista Sydney Possuelo formatou a política do não contato e é reconhecido internacionalmente como a maior referência no tema dos isolados. Primeiro, ele liderou missões de contato para o regime militar. Mais tarde, entendeu que a estratégia era equivocada. No Brasil, há pelo menos 114 povos indígenas isolados. Deles, pouco se sabe sobre organização, população e costumes. A maior concentração de povos isolados está na Terra Indígena Vale do Javari, no extremo oeste do estado do Amazonas. A região, do tamanho de Portugal, é alvo da cobiça de pescadores ilegais e garimpeiros. Também é rota do tráfico de drogas e de armas. Segundo entidades indigenistas, a exploração de bens naturais por invasores ameaça a existência dos nativos porque há mudanças na oferta de alimentos e demais itens necessários à subsistência. Para além do marco temporal e da possibilidade de contato com isolados em casos de “utilidade pública”, o projeto de lei permite a instalação de empreendimentos dentro de terras indígenas.
O texto cita instalação de “equipamentos, redes de comunicação, estradas e vias de transporte, além das construções necessárias à prestação de serviços públicos”. Entidades e deputados contrários à proposta classificam o trecho como problemático. Segundo o Instituto Socioambiental (ISA), não se olvida da necessidade de estruturas físicas para a prestação de serviços de saúde e educação nas terras indígenas. Todavia, o artigo é genérico e permite a implantação de estradas e outras estruturas impactantes para qualquer finalidade. A aprovação do Projeto de Lei do Marco Temporal impôs uma derrota ao presidente Luiz Inácio Lula da Silva, com o apoio da base na Câmara, e levou a oposição a comemorar o revés. Aliados do governo apostam no Senado e no Supremo Tribunal Federal (STF) para reverter o fracasso. A proposta que delimita até 1988, ano de promulgação da Constituição, a demarcação de terras indígenas recebeu o aval de 283 deputados, dos quais 98 de partidos com espaço na Esplanada dos Ministérios. Um recado, porém, chegou ao STF com uma semana de antecedência.
A FPA comemorou e disse que o projeto vai deixar claras as condicionantes da demarcação das terras indígenas, deixar clara a questão do marco temporal, fazer com que o direito de propriedade e a segurança jurídica imperem no País. Entidades do agronegócio cobram prudência do STF. A Associação dos Produtores de Soja e Milho do Estado de Mato Grosso (Aprosoja) afirmou que a votação fez justiça tanto para indígenas quanto para a população. A Associação Brasileira de Produtores de Algodão (Abrapa) espera que o STF entenda a mensagem dada pelo Congresso. A ex-ministra de Agricultura de Bolsonaro, a senadora Tereza Cristina (PP-MS) disse que o marco temporal proporciona “paz no campo”. A Articulação dos Povos Indígenas do Brasil (Apib) prevê novas articulações no Senado. Se o STF decidir pela total inconstitucionalidade do tema, a votação da Câmara pode ser anulada. Fonte: Broadcast Agro. Adaptado por Cogo Inteligência em Agronegócio.